As hélices desequilibradas do gerador elétrico acabaram desgastando prematuramente os rolamentos e os ruídos se tornaram mais perceptíveis com o passar dos dias. Quem sabe quanto tempo duraria assim. De qualquer forma, era apenas uma questão de tempo. Como tudo.
Substituí-lo levaria horas.Desmontar o rotor, extrair os rolamentos, trocá-los e montá-los novamente.
Masissonão foi possível e tivemos que esperar. Por enquanto, o banco de baterias ainda estava carregado e podia se usar algumas coisas, como o rádio, embora não fizesse muito sentido, só se conseguia ouvir o som áspero da estática. Não houve transmissões, nem música, nem mesmo más notícias.
—Minhas gengivas estão sangrando, acho que estou com câncer.
—É escorbuto, olha a auréola nas suas unhas.
—Estou lhe dizendo que é câncer!
—Está tudo bem, Eva! Se você diz que é câncer... quem sou eu para te contradizer!
—Foda-se!
—Já chegamos, não precisa ficar bravo meu amor.
—Não há mais vitaminas?
—Não…, e quase não há comida. Se raciocinarmos talvez ganhemos alguns dias...
-Ração? Kkkkk! Há meses que comemos esta merda em latas meio podres. Por que diabos você quer ganhar alguns dias, uma hora, um minuto!... Eu quero morrer Urso! Atire em mim!
—Não tenho balas, meu amor..., me desculpe.
Urso se lembrou do dia abençoado em que se conheceram entre rostos estranhos e a apatia de uma festa, trocaram olhares no mesmo momento e ela riu. Ele se aproximou dela e disse um olá tímido.
—Olá Urso, meu nome é Eva..., isso é muito chato.
"Sim, e a música é uma merda", disse ele, e eles riram com conhecimento de causa.
-Você quer uma cerveja?
—Não…, melhor um mojito, com bastante tequila.
—Força.
Assim que o viu nunca mais se mais se separaram.
As rajadas de vento levantaram as telhas e fizeram ranger a estrutura da casa e as treliças do telhado. A qualquer momento ele iria se levantar como um chapéu de palha.
Urso desceu a escada de madeira, olhou para o sótão, acendeu uma luz branca fraca e suja e viu que restavam duas latas de comida sem rótulo e um recipiente de água de supermercado com prazo de validade vencido.
Ele descobriu e cheirou, talvez fervendo ele pudesse beber. Ele empurrou os degraus dobráveis com uma mão e mal conseguiu ouvir o grito frágil de Eva. Ele estava muito fraco.
-Urso! Vou ser eletrocutado!
—Eva…, com doze volts é impossível.
—Faça algo estúpido!Estamos caindo!
—E quando termina a comida? O quê?… Vamos amputarecomer aos bocados! Ededicadahoje,atiaamanhã!… Urso…, isso não pode acontecer hoje! Nós vamos morrer de qualquer maneira! —ele afirmou soluçando.
—Está tudo bem Eva... Você sabia que eu te amo?
—Sim, meu Urso… Por favor, me abrace!…, estou com medo e com frio.
Urso gentilmente pegou sua cabeça rala e ela sorriu desdentada e sangrando.
E ele a beijou com toda a ternura que um homem poderia ter, sem parar de olhar nos olhos dela, até o último segundo de sua vida. Um movimento repentino desconectou a medula espinhal do cérebro e ela desligou repentinamente. Uma breve “fissura” no pescoço.
"Lamento, meu amor", disse ele, chorando inconsolavelmente.
Ele a pegou como uma noiva e gentilmente a deitou, apertando as mãos ossudas e escaldadas sobre o peito.
Ele beijou a testa dela e caminhou ao redor da cama até abrir a mesa-de-cabeceira ao seu lado.
Ele vasculhou relógios velhos e baterias sulfatadas até encontrar o minúsculo projétil. O último na terra.
Ele se deitou ao lado de Eva e colocou a bala no cano. Ele puxou o gatilho duas vezes e nada. De novo e nada. Ele insistiu até sentir o flash amarelo entrar em seu crânio. Agora sim, se extinguiram como trilobitas. Como todos.
O vento forte arrancou o teto, elevando-o como uma barril gigante flutuando no universo. Enquanto a chuva de radiação cósmica os diluía num fragmento infinitesimal do que costumávamos chamar de tempo.
Fim